Por Nevaldo
Leocádia Bastos Júnior
Retomar
os rumos escolares que me trouxeram até aqui é sempre uma oportunidade para
(re)aprender. Articular, então, com os processos históricos apresentados é um verdadeiro
desafio. Desafio não no sentido de dificuldade, mas de realinhar algumas
"verdades" que me eram tidas como absolutas. O ato de "ruptura intelectual",
proporcionado pela academia, causou impactos que não permitem voltar ao meu
estado anterior. Antes de me aprofundar nesse aspecto específico, vou comentar
sobre os caminhos que a vida me proporcionou.
Minhas
primeiras lembranças de vida escolar retomam do Jardim de Infância Girassol,
escola de caráter privado. À época, uma escola de referência no ensino das
séries iniciais, que posteriormente se tornaria o Colégio Sodré Miranda, estendendo
seu campo de atuação ao Ensino Médio e técnico. Cursei os ditos
"Jardins" I, II e III, além de parte do C.A. (Classe de
Alfabetização), que na atual definição jurídica do nosso sistema educacional
corresponde ao 1º Ano do Ensino Fundamental.
Era
o ano de 1998. Minha permanência no dito colégio acabaria por ai. Devido à
progressão de séries, o preço das mensalidades igualmente iria seguindo um rumo
crescente. Somou-se ainda a um dos maiores traumas, se não o maior, que
enfrentei na minha vida: o câncer em meu avô materno. Conciliar os cada vez
mais elevados custos educacionais, com os caros remédios foi um fardo maior que
meus pais puderam comportar. O que me fez seguir rumo a uma instituição
pública.
No
segundo semestre daquele ano, fui transferido à Escola Municipal Alexina
Lowndes. Unidade Escolar que minha mãe lecionou durante dez anos, além de fazer
parte da administração da escola pelos próximos cinco anos. Vinda das políticas
públicas adotadas pelo governo municipal do PT na década de 1990, a escola
realmente era excelente, apesar de suas limitações.
"Além"
De
alguma forma, eu estava "além" dos meus colegas. Longe de uma
genialidade latente, o "segredo do sucesso" estava na educação que
tive na escola particular. Para efeitos demonstrativos, enquanto meus colegas
aprendiam as primeiras letras, eu já lia textos inteiros. Apenas anos mais
tarde, cursando a Faculdade, compreenderia esse valor exacerbado, além do
investimento propriamente dito, dado às instituições privadas de ensino em
detrimento às instituições públicas. Ainda que não se possa generalizar tal
dicotomia.
Prossegui
na E.M.A.L. pelos próximos seis anos letivos, vindo a me transferir em 2005.
Nos dois últimos anos, afirmo sem pesar, a semente da docência foi plantada em
mim. Não vou mentir. Não era meu sonho ser professor em si. Na verdade, o desejo
nasceu mais pela admiração por certo docente. Na figura do professor Jorge B.
Fernandes, professor de História (e recentemente doutorado pela UFF), tive meu
primeiro contato com a área de Ciências Humanas. E como adorei! As aulas acerca
das civilizações antigas me pegaram em cheio, exatamente num momento em que entrava
em litígio com a área de Exatas, justamente pela violência simbólica praticada
por outro professor.
Dali
em diante eu adotaria História como minha matéria favorita. Algo comum na vida
de qualquer estudante, a escolha de algo que se identifique. E não apenas isso,
mas disciplinas por "aproximação" também dedicava minha maior
atenção. Citando, por exemplo, Língua Portuguesa e Geografia. Em contrapartida,
a partir desse momento perdi completamente o interesse pelos números, chegando
até mesmo a ser displicente.
Minha
trajetória educacional continuou no Colégio Estadual Honório Lima. O melhor
colégio estadual instalado no município ou, como dito constantemente, o
"menos pior". Adentrei no 8º Ano, antiga 7ª Série. E foi um choque.
Se na E.M.A.L. havia um corpo docente minimamente engajado, no C.E.H.L, em sua
maioria, eram professores desmotivados. Em muitas matérias haviam professores desinteressados,
que nem ao menos nossos nomes sabiam, mas também existiam os esforçados para
cumprir sua função. Como não é objetivo aqui fazer juízo de valor, vou dar
prosseguimento ao texto.
Porto Seguro
Com
o saudoso professor Wanderley Silva encontrei um porto seguro naquele turbilhão
que me encontrava. Somavam-se os efeitos da puberdade a problemas econômicos na
família, meu foco era completamente perdido. Apesar de tudo, o que restava para
mim era estudar. Estudar ou desviar meu rumo para os caminhos ilícitos da vida.
Talvez
o rigor imposto por ele tenha me ajudado a conseguir maior concentração. Não um
rigor autoritário, mas construído em meio às atitudes observadas. Até hoje,
vendo meus boletins, percebo que foi o único professor que possuo número mínimo
de faltas. Em um ano em particular, não faltei a nenhuma das aulas. E o maior
mérito, me fez estudar Ciências Exatas. Lecionando Química nos três anos do
Ensino Médio e assumindo Física nos dois últimos anos, realmente me fez
aprender algo. Conceitos esses que utilizei para "me virar" em Matemática,
já que a jovem professora parecia ter outras preocupações.
Fazendo
dupla com o professor Wanderley, havia ainda a professora Ana Carla, que
lecionou Geografia, também nos três anos do Ensino Médio. Hoje vejo que ela
tentava incutir um pensamento progressista em nós, alunos, com as matérias
aplicadas. Buscava criar uma consciência crítica. E admito que, dentro dos
limites que possuía, foi competente. Desde aquela época eu tinha conhecimento,
mesmo que raso, sobre o cenário político internacional. Por sinal, foi tal
docente que me incentivou a ingressar no curso de Pedagogia, oferecido pela UFF
aqui em Angra dos Reis. E esse é o próximo passo da minha caminhada.
À
época, passando no vestibular, me tornei oficialmente aluno da Universidade
Federal Fluminense. Talvez por efeito da juventude, por ter entrado de forma
precoce, não dei o devido valor nesse primeiro momento. Fiz o vestibular
pensando "vou ver no que dá" e a aprovação foi uma enorme surpresa.
Surpresa para mim, pelo menos, pois, sinceramente, não acreditava que passaria
na temida "seleção uffiana". As pessoas em meu entorno me exaltaram,
disseram que foi "um feito extraordinário para quem vem de escola
pública". Essas palavras só me levariam à reflexão anos mais tarde, já
como universitário e inteirado dos processos educacionais do Brasil.
Como
dito, a infantilidade, pois esse é o termo, somado ao deslumbre, fizeram não me
engajar como deveria naquele momento. O que seria reforçado meses à frente pelo
outro ponto de impacto em minha vida. Minha avó materna sofreria um Acidente
Vascular Encefálico. Longe da inocência infantil que me protegeu antes, agora
tudo estava muito claro. Eu vi minha estrutura familiar desmoronar de uma vez.
E eu não passaria "em branco".
Naquela
altura eu já estava completamente alheio. Cursava pensando apenas em trancar ao
fim do período. O esforço, de fato, vinha da parte dos docentes. Tentando me manter
ainda na Universidade, foi me dado prazos e concedidos alguns privilégios. Por
que não? A partir do ponto que me colocam em posição de vantagem em comparação
aos meus colegas, a relação se tornou injusta. "Perdão" de faltas,
trabalhos complementares e tantas outras coisas.
Criou
uma relação dicotômica na minha cabeça. Destaco aqueles que tentaram “recuperar”
a mim como aluno naquele momento, como a professora Silmara Marton, de Filosofia da Educação; Luciana Requião, em Economia Política e Educação; e Marcos Marques, em
Sociologia da Educação. Novamente acreditei no papel do professor, vi de fato uma
intervenção direta. Porém, fazendo contraponto, um professor do Instituto (de
Educação de Angra dos Reis), que nem ao menos me dava aula naquele momento, praticamente
me "baniu" da Academia com suas palavras. Talvez não com esse
objetivo, assim tiveram efeito. Ainda tentei iniciar o 2º Semestre, mas acabei
por trancar minha matrícula devido ao falecimento de minha avó.
Ano difícil
Creio
ter sido o ano mais difícil da minha; agora, "vida adulta".
Aproveitei o "ano sabático" para refletir, trabalhar, repensar de
fato no que queria. Foi difícil. Mesmo não dizendo, meu abandono à Faculdade
foi uma decepção para meu pai. Não era algo dito em palavras, mas em expressões
e gestos. Ele dizia apoiar minha decisão, mas estava destruído por dentro. E
isso me afetava. Também pudera. Sempre foi o chamado "peão",
assumindo qualquer emprego para prover o sustento da casa. Ver o filho em uma
Universidade Pública, e de prestígio, era como sentir que seu dever estava
cumprido. Dentre os filhos, dos que estão em idade para ingressar no Ensino
Superior, fui o primeiro. No geral, em toda a família, contando primos e
ademais, fui o segundo.
Mais
preocupado em dar uma resposta ao sofrimento do meu pai, resolvi dar uma
segunda chance à Universidade. Hoje percebo que foi uma segunda chance para mim
mesmo. E assim o fiz. Regressando ao curso, exato um ano depois, senti um
enorme sentimento de insegurança. Na verdade, medo. Muitas vezes pensei "o
que estou fazendo aqui?". Ver colegas que iniciaram comigo bem mais à
frente era desestimulante. A mudança de grade curricular também foi um entrave,
pois bagunçou completamente meu plano de estudos, me forçando
"peregrinar" por diversos períodos.
E
mais uma vez um professor me estendeu a mão. Talvez tenha sido ai que me fixei
verdadeiramente ao curso, criando vontade de continuar. A disciplina?
Epistemologia e História das Ciências, naquele momento ministrado pelo
professor Rodrigo Torquato. Além da afinidade imediata, a rigidez que ele
mantinha em suas aulas me prendeu, repetindo o "efeito Wanderley"
anos depois.
Penso
que a leitura que mais me impactou nessa disciplina foi "A Formação do
Espírito Científico", de Gaston Bachelard. Eu me senti desafiado, quase
como se o autor me esnobasse, o que me fazia ler mais e mais. Outra leitura que
me inseriu de vez no contexto acadêmico foi “Um Discurso sobre as Ciências”, de
Boaventura Souza Santos; também apresentado na disciplina citada.
Utilizava
os conhecimentos que absorvia em uma disciplina de 3º Período e empregava nas
disciplinas de 1º e 2º Período. Em uma verdadeira relação dialética, eu fui
construindo uma concepção à parte de aprendizado, criando meu “próprio ritmo”.
Por me engajar em Epistemologia, sentia as outras matérias ficarem
"fáceis", o que me ajudou a superar aquele medo que se deu em meu
retorno. Aos poucos eu ia me apropriando da lógica acadêmica, coisa que passou
longe da minha percepção na minha primeira passagem.
Nota 10
E
é chegado o terceiro impacto que sofri. Dessa vez não era algo que
desestruturasse minha família, mas igualmente desestabilizador. Era final de
semestre, momento de pegar as notas e saber se iria prosseguir ou ficar retido
em alguma disciplina. O que para meus colegas era algo extremamente assustador,
para mim era momento de ansiedade. Queria realmente saber como havia me saído.
E consegui notas excelentes! Perdão se a modéstia não está presente, mas para
alguém que estava "enferrujado" foi um cenário excelente.
O
que me abalou mesmo foi a nota em Epistemologia. Não uma nota baixa, mas o
extremo oposto. Consegui tirar um "10", o sonho de qualquer
estudante. Mas para mim era mais, foi simbólico. Mais do que atingir os
objetivos propostos em excelência, os comentários do professor me pegaram de
assalto, ainda mais pela minha saída e retornos conturbados. Eram os tipos de
palavras de exaltação ao meu potencial. Algo que jamais pensei que iria ouvir.
Ao chegar em casa me dirigi ao meu quarto e, sem saber exatamente a razão, cai
em lágrimas. Penso que algo que me falta ainda hoje é dizer um simples
"obrigado" ao professor Rodrigo. Creio que ele não sabe a importância
que tem em minha vida acadêmica.
Daí
em diante meu foco era outro. Apropriei-me dos preceitos aprendidos com esse
"10", como por exemplo, buscar leituras mais densas. Mesmo que não
entendesse em um primeiro momento, mas pelo menos para "exercitar o
cérebro". Passei também a exercitar mais minha escrita, tentando
sintetizar as ideias que lia. Aproveitei o período de greve para por em prática
esse método de estudo. Com o passar o tempo minha leitura fluiu melhor, minha
interpretação melhorou significantemente e me senti inserido plenamente no
contexto acadêmico.
Pelo
meu crescente poder de interpretação passei a correlacionar o que era lido em
sala com aspectos da minha vida. Como para qualquer estudante de um curso de
humanas, que tem contato com a obra de Marx, além de ser oriundo das classes
populares, passei a tentar enxergar o mundo de outra forma. Atualmente a figura
que mais vem me atraindo é Florestan Fernandes. Principalmente pelo caminho que
trilhou, é um pensador que quero entender melhor.
Não
só isso, a própria concepção organizacional da educação me chamou a atenção. A
influência católica e militar, que foram exercidas na conjuntura educacional do
Brasil, fez sentido em meus pensamentos. O porquê da vontade dos meus avós
maternos que seu primeiro neto fosse um padre ou um militar.
Aliás,
a opção ao clero quase se tornou uma realidade em um passado cada vez mais
distante, na vida do infante Nevaldo, enquanto ainda aluno da E.M.A.L. Por um
despertador que não funcionou, hoje estou aqui e não em Roma, como era desejo
da minha avó. A Academia está me ajudando a pensar o mundo. Não por menos estou
deixando de acreditar em acasos. Esse desejo latente de ambos (meus avós) é uma
construção histórica, muito ligada à nossa própria história enquanto nação.
Acredito
que apesar do grande salto que dei, ainda estou muito imaturo academicamente
falando. Sinto como se ainda não fosse o suficiente. Mesmo com maior
independência intelectual, ainda estou ligado aos conhecimentos dos
professores. A faculdade ainda é um turbilhão de ideias, de coisas novas e
assim acredito que será enquanto eu percorrer esse caminho. Algumas coisas
ainda não são claras, ainda há resquícios do medo de tomar uma posição
acadêmica própria. Mas acredito que a solução para isso estar em me debruçar
sobre os estudos e tentar compreender mais. Compreender o curso, a minha
posição nele e na sociedade onde devo atuar.
Futuro
Já
seguindo para o fim do texto, fazer uma projeção para o futuro é uma tarefa ingrata.
Cheguei até dado momento meio que tropeçando. De certo que tenho em minha mente
é prosseguir até onde for possível em minha carreira acadêmica. Ser professor,
óbvio, porém o nível ainda me causa certa dúvida. Sinto não ter capacidade para
lecionar na Educação Infantil. Penso em tentar fazer carreira como professor
universitário. A pesquisa é um aspecto em específico que me atrai. Estou tentando
me apropriar de um viés mais antropológico, além de atualmente passar a ver os
preceitos sociológicos de outro modo.
Porém,
antes de chegar ao meu "objetivo final", a docência universitária,
ainda falta decidir o que fazer depois que concluir o curso de Pedagogia. Curso
outra graduação? A faculdade de Letras me fascina, a Língua Portuguesa em si é
apaixonante. Ou deveria procurar uma pós-graduação lato sensu? Uma
especialização viria a ajudar a repensar os rumos da minha carreira em si. E a
dúvida final é se me aventuro em meio a uma pós-graduação strictu senso, me
debruçando imediatamente sobre a pesquisa científica.
De
certo eu não sei o que serei amanhã. Hoje ainda tento construir o que sou. A
única "certeza" é constatar o que fui e como estou mudando
constantemente devido à (forte) influência da Academia. Parafraseando Raul Seixas,
eu seria uma enorme metamorfose ambulante. A cada período venho a construir um ideário
novo. Cada disciplina estudada me ajuda a pensar, anexar certo tipo de
conhecimento ou descartar outro.
Essa
"sede de saber" que criei acaba tendo um efeito duplo. Ao mesmo tempo
em que me preenche, me faz refletir sobre o tipo de formação ao qual estou me
expondo. Serei um mero teórico da educação, embevecido em literaturas e
teorias? Ou terei a competência de articular teoria e prática em uma práxis
verdadeira e plena? São essas algumas das questões que em dados momentos me
pegam de surpresa devido à naturalidade que surgem em meus pensamentos. De
certo nesse momento, sei apenas que ainda há muito que percorrer.